Lisboa, 17 de janeiro de 2023
Oi, galera
Queria começar fazendo uma pergunta: quem são as pessoas autorizadas a falar? Calma, eu imagino que saibas a resposta, mas esta é uma pergunta retórica. Diante de uma narrativa hegemônica, centralizada numa história escrita por vencedores, não nos faltam indícios de estratégias de apagamento. É e sempre foi interessante para a branquitude e sua supremacia masculina desaparecer com histórias incômodas.
No Brasil, foram poucas as oportunidades que tive de me aprofundar nos levantes revoltos contra os colonizadores. Ouvimos falar de algumas revoltas fracassadas no período regencial, mas os detalhes parecem ter se perdido no tempo. As figuras da idolatria histórica no Brasil pouco compõem os quadros de insurreição. Sabemos que esta é uma estratégia política que mantém uma agenda institucional muito covarde. É desaparecendo com os vestígios de seus crimes e injustiças que os colonizadores e seus herdeiros perpetuaram o privilégio histórico de escapar das dívidas de reparação.
Se no Brasil isto é representado pelas elites do atraso, obviamente brancas e de origem europeia, que espalharam pelo país iconografias de assassinos e criminosos legitimados historicamente, pergunto-me onde esses mesmos índices da impunidade se reúnem simbolicamente no norte do mundo. Seria apenas na extrema direita, em figuras como Giorgia Meloni, Viktor Orbán ou André Ventura? Ou esses discursos estariam mais entranhados nas instituições, no próprio Estado-nação e na manutenção de fronteiras e soberania? A crise migratória em territórios ricos do ocidente evidencia o lapso epistemológico do humanismo e escancara o tratamento reservado a pessoas estrangeiras, especialmente se estas são racializadas e de origem humilde, vindas de qualquer país da ficção de “Sul global”.
Com a guerra na Ucrânia, o lapso se tornou mais transparente dentro da União Europeia. Num acolhimento emergencial de refugiados, pudemos nos deparar com diversas opiniões racistas em redes sociais, acompanhadas de tantas denúncias sobre o tratamento diferenciado que houve na fuga de pessoas do território ucraniano. E, longe de questionar a solidariedade em tempos de guerra, mais do que necessária, chama atenção o tratamento diferenciado quando as pessoas que precisam de ajuda não se encaixam na lista de prioridades de uma economia política que usufrui da desigualdade entre povos.
À época li em uma página algo como: “ajude imigrantes ucranianos, eles são trabalhadores e vão colaborar com a economia, não estão migrando para Portugal para depender de benefícios sociais do Estado, como outros imigrantes”. A audácia de uma declaração pública como essa espanta ao ver a naturalidade com a qual esse tipo de insinuação é feita sem que qualquer resposta chegue a refutar a explícita xenofobia. Seguimos tantas vezes diante de violências veladas, assédios e brincadeiras de mau gosto que o cansaço diante de qualquer discussão se instala. Penso nas vezes em que preferi ficar calado a me desgastar com insinuações racistas sobre pessoas brasileiras ou latino-americanas. Outras tantas, quando resolvi me posicionar, fui silenciada, como se o momento não fosse adequado para o debate. Lembro-me da metáfora da máscara do silenciamento apontada por Grada Kilomba. Teriam essas máscaras simbólicas sido retiradas em algum momento de corpos que continuamente são desautorizados a falar? A violência simbólica não vem dissociada de sua versão física e as pessoas que no passado eram impedidas de abrir a boca com máscaras confeccionadas com metal foram as mesmas açoitadas em praça pública, tantas vezes até a morte.
O silêncio é parte do pacto mórbido que mantém os vestígios da necropolítica nas democracias modernas. De mais longe já viemos e a imposição da economia política de expropriação proveniente do capitalismo mercantil em suas plantations permaneceu como éticas e iconografias. Como pode, em pleno século XXI, os índices do silêncio mórbido e da violência física permanecerem de pé como atrações turísticas enfeitadas para o natal? Nenhuma contextualização, nenhuma autocrítica, sequer uma observação histórica. Os ícones e símbolos do colonialismo seguem incólumes em Lisboa. Lembro-me da performance da coreógrafa brasileira Ana Pi na Praça do Município, que abriga o Pelourinho de Lisboa, durante o Festival Alkantara em 2021. Admirei me ao perceber que o espaço não carregava qualquer referência sobre o símbolo, que pode ser um dos mais ultrajantes da historia colonial. Ana, então, conjurou com gelo seco uma memória, oral e háptica, sobre os corpos ainda violentados pela mesma perspectiva de mundo que mantém esses monumentos de pé. Em alguma parede, num dos prédios próximos ao monumento, pude ler uma pixação. Dizia “CANALHAS”.
A pixação e a performance de Ana Pi me transportaram para outro tempo histórico e pude sentir minha indignação como algo partilhado. Nessa espécie de luto, visualizei a continuidade do projeto de genocídio, no Brasil e aqui, mas não me senti só. Não demorou muito para que Ana nos tirasse dali numa caminhada que nos levou a uma espécie de festa baiana em plena Lisboa. Saímos do símbolo mórbido incólume para um ato de resistência política, a festa, onde as interdições materiais e discursivas fizeram-se enfraquecidas. Esse importante deslocamento me fez pensar que os silenciamentos não são permanentes e a história, em seu terreno de disputas políticas e narrativas, não iria tardar como algo implacável.
Se há lugares que não nos permitem falar ou que ignoram nossas subjetividades, invisibilizando nossas histórias, há outros onde tudo isso se protege e sobrevive. Chegamos ao fim da história única, logo as éticas e iconografias também chegarão. Voltando à primeira pergunta, é
chegado o momento de modificá-la; numa outra perspectiva retórica. Afinal, onde estão as pessoas capazes de nos ouvir? Sem escuta o conhecimento morre ou alcança seu desejado ostracismo.
Tiago Amate