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Lisboa, 19 de janeiro de 2023.

Olá, gente, queridos amigos ou pessoas curiosas,

Por acaso hoje tenho pouca paciência e considerando a delicadeza do assunto, quero ir direto  ao ponto. Começo com a bandeira presente na obra do artista visual Rodrigo Saturnino, exposta em  2022 na mostra Interferências, do MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia). Nela é  possível ler “não foi descobrimento, foi matança”, uma obviedade no contexto dos estudos sociais e  teorias críticas da historiografia brasileira, mas que causou diversas reações na esfera pública  portuguesa.

Ao passo que muitas pessoas assimilaram a crítica, pois a ideia de descobrimento já não  é adequada para falar sobre a invasão seguida de genocídio e exploração em Abiayala (aliás, nunca  foi adequada, mas os vencedores escreveram a história, portanto desinstalar esta ficção levou  séculos), a reação negativa sobre a obra de Saturnino revela a síndrome de colonizador que ainda  permanece na mentalidade de muitos atores da vida social portuguesa. Políticos, historiadores e  profissionais liberais foram às redes sociais e demais veículos de comunicação anunciar a obra  como disparate, pedindo boicote ao museu, ao chamar a exposição de lixo e de uma ofensa aos  portugueses.

As reações causaram no Brasil uma intensa cobertura sobre a polêmica instalada com  Saturnino, revelando certa “surpresa” da imprensa com a atitude dos portugueses. Eu, que já estou  aqui há pouco mais de um ano, posso afirmar com toda a certeza: tal comportamento negacionista  não nos é nenhuma novidade. A comunidade brasileira, que configura o maior contigente migratório  em território português, passou a divulgar nos últimos anos, por meio de páginas na internet ou  mesmo redes sociais, os inúmeros casos de xenofobia, racismo e misoginia que acompanham o  tratamento reservado a nós em inúmeros contextos da esfera pública portuguesa. Ora, se atitudes  vexatórias como essas fazem parte da rotina de pessoas brasileiras aqui, como esperar reações  diferentes a essa, que negam a herança sanguinária do período colonial para chamá-la de disparate.  Obviamente há muitos cidadãos portugueses com plena consciência histórica sobre os fatos do  colonialismo, mas isso não parece suficiente para derrubar os mitos que cercam a figura  expansionista do navegador português. Estamos falando de um símbolo que é orgulho e parte da  identidade nacional.

No Brasil, a destruição desses símbolos e narrativas vêm acontecendo lentamente, mas  ganhou força com os estudos pós-coloniais e decoloniais nas últimas décadas. Quando ainda era  uma criança, nos anos 1990, a narrativa dos “descobridores” ainda nos era enfiada goela abaixo nas escolas e comemorávamos, até fantasiados, o dia 22 de abril como a data de descobrimento do país.  Lembro-me da chegada do ano 2000 e das comemorações feitas acerca dos 500 da ida dos  invasores, sem nenhuma crítica à festividade coordenada em torno de símbolos de um genocídio  que retirou e cujas heranças ainda retiram vidas no Brasil. Estamos falando de milhões de vidas  indígenas e africanas que ali pereceram quando não se curvavam ao projeto de epistemicídio e  violência física em curso. Por isso ainda estão espalhadas pelo país inúmeras homenagens aos  assassinos alçados como heróis históricos. O projeto de continuidade narrativa foi perpetuado pelas  famosas elites do atraso, que se orgulham de sua ascendência europeia (algumas vezes têm até  dupla cidadania) e foram responsáveis pelo projeto de embranquecimento da população brasileira a  partir de teorias eugenistas que vigoraram como política institucional durante boa parte do século  XX.

Tudo isso para dizer que não me surpreende a capital portuguesa ainda alimentar essa ficção  com um monumento megalômano em homenagem a exploradores criminosos, se aqui figuras  públicas ainda reiteram discursos negacionistas. Afinal, como brancos europeus descobriram Abya  Yala se há cerca de 18 mil anos já havia fluxo migratório de origem asiática? Ao batizarem de  América um território ocupado há milênios por migrações que começaram pelo Estreito de Bering,  os colonizadores roubaram não apenas a vida material dos povos que assassinaram, mas destruíram  todas as heranças culturais que foram apagadas pela narrativa de descobrimento. A desumanização  dos corpos e populações que ali encontraram é o que mantém essa perspectiva de pé e revela a  falácia do humanismo. Como nos alerta Ailton Krenak, uns são parte da humanidade, essa classe  majoritariamente branca, enquanto outros figuram fora da ficção do humano. Apenas um olhar  como esse permitiria as atrocidades que foram e continuam sendo feitas por projetos eugenistas de  uma economia política expansionista.

Na exposição do MAAT, Saturnino também apresentava um vídeo que implodia o Padrão  dos descobrimentos. Ali ele encenava um desejo de todas as pessoas conscientes dos crimes  coloniais. Não se trata apenas de um ultraje ver a imponência de um monumento que é apenas uma  metáfora de um discurso desgastado e violento, trata-se de um crime contra a própria ideia de  humanidade. Se falássemos que seria o mesmo se os alemães construíssem no pós-guerra uma  gigantesca homenagem aos nazistas, seríamos taxados de extremistas de esquerda ou até racistas  reversos (normalmente alcunhas que sobram quando o que faltam são argumentos). Mas é  importante lembrar que o projeto expansionista português matou muito mais pessoas, assim como  outros projetos expansionistas do período. Por isso, nós, da América Latina, costumamos fazer coro  a populações de outras regiões do planeta quando falamos que a comoção dos brancos europeus continua seletiva. Ela diz respeito apenas àqueles que são tidos como iguais. Infelizmente só  poderemos inferir novas perspectivas quando a responsabilidade sobre esses discursos genocidas for  finalmente assumida e combatidas as mazelas provenientes do horror, falemos em reparação  histórica.

Certa altura conversava com uma pessoa portuguesa sobre o absurdo deste monumento em  Lisboa. Estávamos num pub em Anjos e a conversa começou com uma pergunta que eles adoram  nos fazer: “Então, como está sendo, está gostando de morar aqui?”. Nessa armadilha sempre tento  desempenhar um papel de mediadora, lembrando os bons encontros em Portugal, mas também não  perco a oportunidade de falar sobre os absurdos da xenofobia e da manutenção das narrativas  coloniais. Muitos não gostam quando tocamos na ferida e, nessa situação, parecia o caso. De  repente, enquanto falávamos, uma amiga dela (ambas brancas, vale registrar) puxou-me pelos  cabelos. Aquela interrupção foi tão absurda e violenta que parei de falar sobre a crítica em questão.  Fui calmamente tirar satisfações daquele ato aparentemente coordenado e a idiota ainda teve a  audácia de dizer não estava sendo racista comigo. Como se não bastasse, puxou meu cabelo  novamente. Quando relatei isso aos amigos mais íntimos, perguntaram-me por que não devolvi a  agressão física. Num misto de incredulidade e cansaço, respondo que fiquei sem reação. Mas, no  fundo, eu, assim como tantas outras pessoas brasileiras migrantes na Europa, sei que qualquer  resposta à altura das violências que sofremos pode custar muito caro. Prefiro, então, revelar o  caminho onde essas pessoas se autossabotam, destruindo-se a si mesmas sem que nada precisemos  fazer. Sua negação é uma tatuagem.

Penso na situação que Grada Kilomba passou em 2021 quando aplicou para representar  Portugal na Bienal de Veneza de 2022 com o projeto “A Ferida”, em inglês “The Wound”. Pelo  absurdo desvio padrão de uma das avaliações, o projeto não pode representar o país. O avaliador,  um homem branco português, único a dar notas completamente inadequadas à grandeza do projeto e  à trajetória da artista, disse simplesmente que a ideia de racismo como ferida aberta já teria sido  abordada de inúmeras outras formas. Nuno Crespo alegou que a ideia e crítica de Grada Kilomba já  teria sido discutida em Portugal. Até hoje me pergunto como uma justificativa estapafúrdia como  essa pode ter sido aceita na esfera pública portuguesa. Lembro-me de algum estudante de artes  relativizando a reclamação de Kilomba sobre o desvio avaliativo e a justificativa incoerente.  Quando conversava com esse rapaz pude ter a certeza de que essa ferida não é uma simples fenda,  mas um grande abismo, fruto ainda do negacionismo histórico e da ausência de políticas ativas de  educação e reparação.

É nesse grande abismo que os monumentos megalômanos do genocídio emergem e é  também ali que a moralidade vigente adota seu primeiro posicionamento: a negação. Segundo  Kilomba, esse processo de responsabilização é psicológico e países como Portugal ainda estariam  dançando entre essa primeira etapa, de negar a história colonial, e a culpa, que não assume  responsabilidade mas apenas reitera a descrença: “afinal, não foi assim, foi de outra maneira”.  Haveria o terceiro estágio, o da vergonha e da reflexão. Para chegar aí não há outra forma senão  tocando nesta ferida abissal, do tamanho de países na Ásia, África e América Latina. Que a esfera  pública portuguesa revisite suas feridas e assuma o abismo colonial. O tempo se esgotou e estamos  exaustos de um futuro que repete o passado, é chegada a hora de demolir esse museu de grandes  novidades.

Tiago Amate




Lisboa, 19 de janeiro de 2023.

Olá, gente, queridos amigos ou pessoas curiosas,

Por acaso hoje tenho pouca paciência e considerando a delicadeza do assunto, quero ir direto  ao ponto. Começo com a bandeira presente na obra do artista visual Rodrigo Saturnino, exposta em  2022 na mostra Interferências, do MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia). Nela é  possível ler “não foi descobrimento, foi matança”, uma obviedade no contexto dos estudos sociais e  teorias críticas da historiografia brasileira, mas que causou diversas reações na esfera pública  portuguesa.

Ao passo que muitas pessoas assimilaram a crítica, pois a ideia de descobrimento já não  é adequada para falar sobre a invasão seguida de genocídio e exploração em Abiayala (aliás, nunca  foi adequada, mas os vencedores escreveram a história, portanto desinstalar esta ficção levou  séculos), a reação negativa sobre a obra de Saturnino revela a síndrome de colonizador que ainda  permanece na mentalidade de muitos atores da vida social portuguesa. Políticos, historiadores e  profissionais liberais foram às redes sociais e demais veículos de comunicação anunciar a obra  como disparate, pedindo boicote ao museu, ao chamar a exposição de lixo e de uma ofensa aos  portugueses.

As reações causaram no Brasil uma intensa cobertura sobre a polêmica instalada com  Saturnino, revelando certa “surpresa” da imprensa com a atitude dos portugueses. Eu, que já estou  aqui há pouco mais de um ano, posso afirmar com toda a certeza: tal comportamento negacionista  não nos é nenhuma novidade. A comunidade brasileira, que configura o maior contigente migratório  em território português, passou a divulgar nos últimos anos, por meio de páginas na internet ou  mesmo redes sociais, os inúmeros casos de xenofobia, racismo e misoginia que acompanham o  tratamento reservado a nós em inúmeros contextos da esfera pública portuguesa. Ora, se atitudes  vexatórias como essas fazem parte da rotina de pessoas brasileiras aqui, como esperar reações  diferentes a essa, que negam a herança sanguinária do período colonial para chamá-la de disparate.  Obviamente há muitos cidadãos portugueses com plena consciência histórica sobre os fatos do  colonialismo, mas isso não parece suficiente para derrubar os mitos que cercam a figura  expansionista do navegador português. Estamos falando de um símbolo que é orgulho e parte da  identidade nacional.

No Brasil, a destruição desses símbolos e narrativas vêm acontecendo lentamente, mas  ganhou força com os estudos pós-coloniais e decoloniais nas últimas décadas. Quando ainda era  uma criança, nos anos 1990, a narrativa dos “descobridores” ainda nos era enfiada goela abaixo nas escolas e comemorávamos, até fantasiados, o dia 22 de abril como a data de descobrimento do país.  Lembro-me da chegada do ano 2000 e das comemorações feitas acerca dos 500 da ida dos  invasores, sem nenhuma crítica à festividade coordenada em torno de símbolos de um genocídio  que retirou e cujas heranças ainda retiram vidas no Brasil. Estamos falando de milhões de vidas  indígenas e africanas que ali pereceram quando não se curvavam ao projeto de epistemicídio e  violência física em curso. Por isso ainda estão espalhadas pelo país inúmeras homenagens aos  assassinos alçados como heróis históricos. O projeto de continuidade narrativa foi perpetuado pelas  famosas elites do atraso, que se orgulham de sua ascendência europeia (algumas vezes têm até  dupla cidadania) e foram responsáveis pelo projeto de embranquecimento da população brasileira a  partir de teorias eugenistas que vigoraram como política institucional durante boa parte do século  XX.

Tudo isso para dizer que não me surpreende a capital portuguesa ainda alimentar essa ficção  com um monumento megalômano em homenagem a exploradores criminosos, se aqui figuras  públicas ainda reiteram discursos negacionistas. Afinal, como brancos europeus descobriram Abya  Yala se há cerca de 18 mil anos já havia fluxo migratório de origem asiática? Ao batizarem de  América um território ocupado há milênios por migrações que começaram pelo Estreito de Bering,  os colonizadores roubaram não apenas a vida material dos povos que assassinaram, mas destruíram  todas as heranças culturais que foram apagadas pela narrativa de descobrimento. A desumanização  dos corpos e populações que ali encontraram é o que mantém essa perspectiva de pé e revela a  falácia do humanismo. Como nos alerta Ailton Krenak, uns são parte da humanidade, essa classe  majoritariamente branca, enquanto outros figuram fora da ficção do humano. Apenas um olhar  como esse permitiria as atrocidades que foram e continuam sendo feitas por projetos eugenistas de  uma economia política expansionista.

Na exposição do MAAT, Saturnino também apresentava um vídeo que implodia o Padrão  dos descobrimentos. Ali ele encenava um desejo de todas as pessoas conscientes dos crimes  coloniais. Não se trata apenas de um ultraje ver a imponência de um monumento que é apenas uma  metáfora de um discurso desgastado e violento, trata-se de um crime contra a própria ideia de  humanidade. Se falássemos que seria o mesmo se os alemães construíssem no pós-guerra uma  gigantesca homenagem aos nazistas, seríamos taxados de extremistas de esquerda ou até racistas  reversos (normalmente alcunhas que sobram quando o que faltam são argumentos). Mas é  importante lembrar que o projeto expansionista português matou muito mais pessoas, assim como  outros projetos expansionistas do período. Por isso, nós, da América Latina, costumamos fazer coro  a populações de outras regiões do planeta quando falamos que a comoção dos brancos europeus continua seletiva. Ela diz respeito apenas àqueles que são tidos como iguais. Infelizmente só  poderemos inferir novas perspectivas quando a responsabilidade sobre esses discursos genocidas for  finalmente assumida e combatidas as mazelas provenientes do horror, falemos em reparação  histórica.

Certa altura conversava com uma pessoa portuguesa sobre o absurdo deste monumento em  Lisboa. Estávamos num pub em Anjos e a conversa começou com uma pergunta que eles adoram  nos fazer: “Então, como está sendo, está gostando de morar aqui?”. Nessa armadilha sempre tento  desempenhar um papel de mediadora, lembrando os bons encontros em Portugal, mas também não  perco a oportunidade de falar sobre os absurdos da xenofobia e da manutenção das narrativas  coloniais. Muitos não gostam quando tocamos na ferida e, nessa situação, parecia o caso. De  repente, enquanto falávamos, uma amiga dela (ambas brancas, vale registrar) puxou-me pelos  cabelos. Aquela interrupção foi tão absurda e violenta que parei de falar sobre a crítica em questão.  Fui calmamente tirar satisfações daquele ato aparentemente coordenado e a idiota ainda teve a  audácia de dizer não estava sendo racista comigo. Como se não bastasse, puxou meu cabelo  novamente. Quando relatei isso aos amigos mais íntimos, perguntaram-me por que não devolvi a  agressão física. Num misto de incredulidade e cansaço, respondo que fiquei sem reação. Mas, no  fundo, eu, assim como tantas outras pessoas brasileiras migrantes na Europa, sei que qualquer  resposta à altura das violências que sofremos pode custar muito caro. Prefiro, então, revelar o  caminho onde essas pessoas se autossabotam, destruindo-se a si mesmas sem que nada precisemos  fazer. Sua negação é uma tatuagem.

Penso na situação que Grada Kilomba passou em 2021 quando aplicou para representar  Portugal na Bienal de Veneza de 2022 com o projeto “A Ferida”, em inglês “The Wound”. Pelo  absurdo desvio padrão de uma das avaliações, o projeto não pode representar o país. O avaliador,  um homem branco português, único a dar notas completamente inadequadas à grandeza do projeto e  à trajetória da artista, disse simplesmente que a ideia de racismo como ferida aberta já teria sido  abordada de inúmeras outras formas. Nuno Crespo alegou que a ideia e crítica de Grada Kilomba já  teria sido discutida em Portugal. Até hoje me pergunto como uma justificativa estapafúrdia como  essa pode ter sido aceita na esfera pública portuguesa. Lembro-me de algum estudante de artes  relativizando a reclamação de Kilomba sobre o desvio avaliativo e a justificativa incoerente.  Quando conversava com esse rapaz pude ter a certeza de que essa ferida não é uma simples fenda,  mas um grande abismo, fruto ainda do negacionismo histórico e da ausência de políticas ativas de  educação e reparação.

É nesse grande abismo que os monumentos megalômanos do genocídio emergem e é  também ali que a moralidade vigente adota seu primeiro posicionamento: a negação. Segundo  Kilomba, esse processo de responsabilização é psicológico e países como Portugal ainda estariam  dançando entre essa primeira etapa, de negar a história colonial, e a culpa, que não assume  responsabilidade mas apenas reitera a descrença: “afinal, não foi assim, foi de outra maneira”.  Haveria o terceiro estágio, o da vergonha e da reflexão. Para chegar aí não há outra forma senão  tocando nesta ferida abissal, do tamanho de países na Ásia, África e América Latina. Que a esfera  pública portuguesa revisite suas feridas e assuma o abismo colonial. O tempo se esgotou e estamos  exaustos de um futuro que repete o passado, é chegada a hora de demolir esse museu de grandes  novidades.

Tiago Amate





















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