Lisboa, 21 de janeiro de 2023
Olá, pessoas queridas
Andei pensando sobre coincidências na vida. Algumas pessoas veem como destino, outras como um acaso aleatório. Considero ambas as possibilidades, mas sem me comprometer com nenhuma delas. Prefiro pensar de forma mais lúdica. Trocar olhares com alguém, por exemplo, e na coincidência dos olhares que se encontram, descobrir algum tipo de ligação desconhecida. E daí começar a especular… será que conheço essa pessoa de outras vidas, ou será que essa troca de olhares foi apenas uma conexão momentânea entre pessoas desconhecidas e de completa irrelevância no contexto das grandes cidades?
Jacques Derrida diz que, quando olhares se cruzam, podemos escolher entre prestar atenção nos olhos vistos, portanto visíveis, do outro e aquilo que ele chama de olhos videntes. Neste último caso, ele compara à situação de nos olharmos no espelho, destacando aquele olhar que se detém ao fluxo e influxo em todos os paradoxos da experiência do auto-retrato, de nos vermos a nós enquanto pensamento. Afinal, vocês nunca tiveram aquela sensação de intuir os pensamentos alheios através dos olhos? Os olhos videntes de Derrida não são nada mais nada menos do que essa consciência partilhada e abismal que adquirimos quando decidimos encarar o outro como um universo de pensamentos. Eu sei que sabes que sei que sabes, e então esse jogo de partilha vidente evidencia o indizível porque indecifrável pensamento alheio. Sabemos que ali se pensa e infere algo, mas podemos apenas intuir, sem certezas, do que se trata. Quando falava sobre a experiência lúdica de olhares nas grandes cidades era um pouco sobre isso, a experiência de uma vidência momentânea. Duas pessoas se olham e estão se percebendo no acaso desse encontro. O que, então, fulano pensou de mim? Com que consciência vejo esse olhos verem? Será que esses olhos já me conhecem, será que me consideram familiar?
De repente, é como se minha consciência se bifurcasse num outro dia, numa outra época e cujas imagens acontecem simultaneamente àquelas que vejo em presença. Poderia tentar fazer paralelos entre essa experiência e quando estamos a fazer qualquer coisa rotineira e nos lembramos de alguém, de algum episódio de nossas vidas, de algum problema por resolver. Ou quando um cheiro ou uma música nos lembram de alguma coisa que aconteceu conosco, de uma pessoa que nos partilhou essas experiências. É difícil qualificar o indizível e explicá-lo, talvez essa tentativa má sucedida só evidencie o quanto eu e tu somos movidos por imagens que se deflagram diante de um estímulo qualquer, que por vezes controlamos, tantas outras não. Dar a essas imagens o estatuto de aleatórias foi apenas uma estratégia de tornar nossas existências mais lógicas e dependentes das especulações materiais oriundas do conhecimento científico. Passamos a ser céticos com as imagens e emoções despertas na coincidência de eventos que não deciframos. É como se tivéssemos passado a desacreditar ou mesmo a não dar importância para as imagens que nos sucedem em pensamento.
Bem, sabemos que o Logos, a razão conjurada pela cultura ocidental se impôs por meio de sua economia técnica, a economia fonética que deu origem a essa escrita que utilizamos, escrita que separa imagem da fala. A hegemonia do Logos, ou o logocentrismo, como queiram chamar, é a base para o contínuo distanciamento de outras formas de pensar, que não sejam interditas pela razão. Ora, ninguém aqui está desvalorizando o Logos, até porque este texto se escreve a partir dele. O problema é sua hegemonia e a interdição oriunda disto. Interdição que justificou por séculos a tomada de poder pelas instituições disciplinares e soberanas. A Igreja e o Estado foram responsáveis, na lógica da propriedade privada, por disciplinar o pensamento, apaziguando-o à força de todas as suas formas de dissidência, que tinham no corpo sua vazão própria. Não à toa o processo civilizador da idade média perseguiu e assassinou tantos corpos, tidos como pagãos. Suas formas de pensamento, suas vidências, eram tidas como bruxaria. Séculos depois isso se manifestaria no processo de colonização de Abya Yala. A interdição sobre a multiplicidade de pensamentos e cosmovisões ali presentes se deu com a violência religiosa da igreja católica e a violência política da monarquia.
Para algumas cosmovisões indígenas realidade e sonho não são experiências apartadas, mas que se contaminam umas das outras. Como explicar formas de pensamento, então, dissonantes às formas logocêntricas perpetuadas pelas sociedades disciplinares? Quando vejo essas imagens, quando vejo vir um acontecimento indizível em forma de linguagem verbal, cujo sentido depende do logos ocidental, lembro-me de que há instâncias do meu pensamento ainda não doutrinadas.
Tiago Amate