Lisboa, 20 de janeiro de 2023
Queridos amigos,
Acordo hoje com uma sensação esperançosa. Recebi notícias maravilhosas do Brasil! Minha prima conquistou um importante trabalho logo agora que terminou a graduação, algo muito difícil de se suceder nesse contexto destruído em que mergulhou o país nos últimos anos.
Não há cidadania sem direitos sociais, políticos e civis. E sem cidadania não há direitos humanos. É uma rede de interdependência que garante a manutenção dos princípios democráticos, reduzindo os grandes abismos sociais herdados da expropriação secular. Nos últimos seis anos não foi fácil ser uma pessoa brasileira, vimos um golpe de Estado misógino ser acompanhado da destruição de conquistas democráticas provenientes das lutas de inúmeros movimentos sociais. A destruição foi proposital e elaborada num grande pacto burguês e militar, reunindo parlamento, imprensa, exército e judiciário. Observar o retorno de uma social democracia depois de tamanho flerte com a ditadura volta a colocar em perspectiva nossos anseios por uma vida mais justa e igualitária.
Anos depois estou aqui em Lisboa, lugar onde havia conjecturado fazer meu doutorado. Infelizmente não consegui, assim que acabei o mestrado, nenhuma bolsa que financiasse minha pesquisa. As alegações eram de que as pesquisas em artes, como a minha, não eram mais prioridade. Foram anos trabalhando, e na travessia de uma pandemia, para conseguir juntar algum dinheiro para aqui estar. Além disso, tive de fazer uma vaquinha (crowdfunding) para arrecadar os fundos que faltavam. Cheguei aqui ajudado por muitas pessoas, mas sem suporte do estado brasileiro. Isso desencadeou uma série de situações que desenham agora minhas condições de sobrevivência. Se antes da ascensão do fascismo pesquisadores brasileiros eram exportados internacionalmente, com todas as pesquisas financiadas, hoje voltamos a acompanhar estudantes em situação de precariedade.
Tenho a teoria de que o forte estado brasileiro começou a incomodar internacionalmente quando os altíssimos investimentos em educação teimaram em nos posicionar de forma independente no planeta. Pessoas brasileiras espalhadas pelo mundo, acessando lugares de poder sem serem submetidas às mesmas situações de exploração. O ápice disso chegou com a descoberta de grandes reservas de petróleo e cujos royalties altíssimos seriam destinados à saúde e educação. À época se descobriu por meio de um relatório do Wikileaks que a presidenta Dilma estava sendo investigada pela CIA. Não demorou muito para que ela fosse deposta injustamente do cargo. Afinal, quais poderes governam a vida social no Brasil? Quem são os agentes do caos a criar esse tipo de interrupções? Sabemos muito bem que o golpe de estado brasileiro foi a reencenação de uma Operação Condor na América Latina. Até porque este golpe não foi isolado. Lembro-me de uma amiga paraguaia no mestrado me avisando do estado de exceção que lá se sucedera e advertindo para tomarmos cuidado, pois as ameaças à deposição de Dilma começaram da mesma maneira com o presidente à época eleito no Paraguai.
Não nos enganemos com a arbitrariedade desses acontecimentos. Foram eles que nos colocaram de volta ao mapa da fome, vulnerabilizaram todas as nossas conquistas e nos submeteram novamente aos lugares-comuns da exploração e xenofobia. Mesmo que tudo isso não tenha sido orquestrado, tais coincidências continuaram privilegiando os países mais ricos a partir da nossa mão de obra barata e de nossas commodities. Ao chegar a Portugal percebi como nossos corpos brasileiros estavam aqui instalados. As inúmeras situações de violência velada ou explícita apenas adensaram essa consciência.
Ao longo do tempo desenvolvi minhas formas de escape em relação a esse contexto de desautorizações e fui adquirindo técnicas de autocuidado. Hidratar meu cabelo se tornou um ritual de fortalecimento da minha autoestima e identidade. Passei também a frequentar mais a praia, pois em contato com o mar meu cabelo adquiria uma beleza que me gratificava. Há anos, então, esse contato com o mar no autocuidado com o cabelo me deu a chance de refazer minha história. Sair em direção à praia para realizar isso também se manifesta como um escape à lógica urbana, que impõe a nossos corpos ritmos e práticas tão invasivos. Abrir um intervalo nessa experiência social opressora e estabelecer tal relação de presença e afeto no mar tem sido uma das formas de resistir e manter pequenas utopias vivas, fruto de outras cosmovisões e prazeres no mundo. Sou uma pessoa cacheada e amo o mar. Se um dia me conhecerem melhor, entenderão essa relação em simbiose.
Tiago Amate