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Lisboa, 25 de janeiro de 2023

Oi, pessoal

Escrevo hoje um tanto saudosista, ao lembrar as temperaturas da minha cidade, tão próxima  da linha do Equador. Em São Luís, reclamava do calor, pois dificilmente temos temperaturas abaixo  dos 20ºC. Nunca pensei que sentiria tanta falta do calor, mas não se trata só do ambiente - é também  calor humano o que temos por lá. Desta vez enfrento meu segundo inverno europeu sem ter  regressado à minha terra. Pode parecer bobo, mas descobri como o frio me afeta não apenas  fisicamente, mas também psicologicamente. Há dias em que travo uma enorme batalha só para  levantar da cama. Às vezes penso que um estado de hibernação seria mais viável para sustentar  essas temperaturas e a melancolia que as acompanha.
Li em algum jornal que a queda de  temperaturas nesta semana se deve a um anticiclone que empurra frio escandinavo à península  ibérica. Os dias estão ensolarados, mas terrivelmente gélidos. E olha que as pessoas que me  conhecem sabem o quanto o sol me deixa esperançoso. Desta vez nem mesmo o sol foi suficiente.

A verdade é que atravessar um inverno pode ser muito duro. Nem quero imaginar o  sofrimento em uma estação como esta sem as devidas condições para enfrentá-la. A indústria  cultural criou narrativas e imagens belas em torno das estações em clima temperado. E esses índices  até hoje pairam na lógica de consumo, como se enfrentar um inverno rigoroso fosse uma  demonstração de poder e status. Como fica, então, a vida fora desse esquema de representação  burguesa? Pessoas morrem congeladas no inverno, ainda mais se são pobres e não possuem as  devidas condições de moradia. Vale lembrar que isso acontece em inúmeras cidades da América do  Sul. Não há nada de fancy no inverno, ainda que você tenha dinheiro o suficiente para se proteger.  Em Portugal, por exemplo, a maioria das casas não possui aquecimento central. O frio é uma rotina  dentro de casa e é terrível não conseguir se locomover adequadamente no seu próprio lar. Por essas  e por outras, a romantização de experiências não vividas é um grande sintoma dessa sociedade do  espetáculo. Nada contra as pessoas que amam o inverno e as idiossincrasias que lhe acompanham.  Só não se esqueçam dos privilégios que possuem para atravessá-lo confortavelmente. Essa,  definitivamente, não é a realidade da maioria das pessoas.

Ainda que muitas paisagens sejam incrivelmente belas, não entendo como as pessoas podem  se desprender de suas relações com aquilo que as cerca. O frio está aí e às vezes ele dói, e não só de  maneira física.
Lembro-me de uma história que ocorreu há cerca de dois anos no Texas, quando  uma nevasca nunca antes vista no estado americano provocou cortes na energia elétrica e acabou deixando milhões de pessoas sem aquecimento adequado. Muitas pessoas morreram tentando se  aquecer desesperadamente com churrasqueiras ou até dentro de automóveis, isso sem falar na crise  de abastecimento de água com a ruptura dos encanamentos, que deixou milhões sem acesso à água  potável. Este é um exemplo de como uma situação extrema na crise climática forçou as pessoas a se  conectarem com o estado das coisas à volta. Enquanto estão aquecidos em suas casas de luxo, os  mais ricos não se importam com o inverno, até que isso os afete diretamente. A questão é que a  modernidade e seus modos de produção proliferaram nos últimos séculos uma intensa desconexão  com o meio ambiente, usufruindo de seus recursos de forma extrativista e irresponsável. Não à toa  chegamos a um estado de calamidade coletiva sem volta, representado por acontecimentos extremos  como o que se sucedeu no Texas, mas também com a pandemia de covid no planeta. Para onde  caminhamos com a indiferença coletiva, suscetível a se transformar em sensibilidade apenas em  casos extremos?
A separação da vida vivida e de todos os biomas e geografias que a cercam desencadeou os  processos de alienação que comandam as lógicas de sobrevivência nas grandes cidades. Se há fome  ou sede, é possível saciá-las a partir do dinheiro. Mas todos sabemos que dinheiro algum compra  vida a longo prazo. Enquanto a experiência do capitalismo financeiro é ilimitada, os recursos do  planeta não. Atualmente, a bandeira do desenvolvimento sustentável é utilizada por empresas e  estados-nação como uma espécie de antídoto para o desastre que se avizinha. Mas, assim como  Krenak, pergunto onde existe qualquer coisa sustentável nessa lógica de mercadoria e consumo. A  sustentabilidade é da manutenção dessa forma de produção megalômana e industrial que continua  pondo em xeque os ciclos da natureza para tornar empreendimentos viáveis. Esses  empreendimentos que são capazes de nos fazer esquecer as reais necessidades de um planeta que agoniza.

Quando li Ailton Krenak pela primeira vez, lembro-me de ter encontrado inúmeras  provocações sobre os temas que agora levanto. Essa ideia de superioridade do homem branco, que  subalterniza tantos povos e espécies para por a ideia de humanidade acima de qualquer  impedimento, lembra-nos de que apenas alguns são humanos, enquanto o resto da vida no planeta é  descartada para servir a essa classe privilegiada, classe que curiosamente acumula esses privilégios  apenas por sua cor, localização geográfica e condição socioeconômica. Quando critica a lógica  branca, etnocêntrica e ocidental, Krenak mostra-nos que outras premissas e cosmovisões de mundo  ampliam a noção de vida, muito longe de restringi-la aos bípedes que estão prestes a colapsar toda  uma biosfera. As pedras, os rios, mares, florestas são também seres cuja importância dá sentido a inúmeras comunidades indígenas. Em algumas culturas são ancestrais, entidades com quem podem  dialogar e até prever acontecimentos que afetarão diretamente o grupo que convive com esses seres.

Ainda que, para nós, pessoas organizadas e educadas nessa lógica de expropriação que  apenas reitera uma rotina automática e dissociada dessas multiplicidades de vida, fazer o exercício  de se deslocar dessas obviedades construídas pelo capitalismo pode ser um pequeno passo para abrir  outras formas de percepção da vida vivida. Todas às vezes em que me sinto angustiado e  pressionado por essa ordem de vida utilitária, tento escapar, mesmo que por alguns minutos, a partir  da conexão que desenvolvi com coisas fundamentais para a minha vida vivida aqui na terra. Seja  um mergulho no mar, um vislumbre do pôr do sol ou mesmo o som dos pássaros numa montanha  afastada. A decisão de interromper o ritmo e a matéria da nossa alienação coletiva é uma decisão  que me permite presenciar a transitoriedade da minha própria presença. Ainda que estejamos  interditados por modos de vida que negligenciam as relações com o mundo, o ato de olhar em volta  e nos lembrar, seja do frio ou do calor, é uma forma de dizer que ainda estamos vivos e sentimos  esse organismo como parte dele que somos.

Confesso que fugir da cidade é sempre um alento diante da frenética rotina a que somos  submetidos. Sempre que posso, encontro uma desculpa para escapar das expectativas que reiteram  esse modo de existência doutrinado pelo consumo ou entretenimento. Quando completei 30 anos,  resolvi fugir de lugares turísticos e de festas badaladas para acabar sozinho na Serra de Arrábida. A  decisão, no primeiro momento estranha para alguns conhecidos, revelou-se uma surpresa cuidadosa  sobre a minha existência. Tive a oportunidade de suspender o tempo e entrar noutro ritmo, até  mesmo o telemóvel me abandonou por algumas horas neste dia. Fiquei com o horizonte, as  montanhas, o sol, os pássaros e um livro. E como faço aniversário durante o inverno no hemisfério  norte, até mesmo o frio estava lá, mas num dia ensolarado ele foi apenas uma companhia tímida.  Naquele dia, minha calma e esperança foram maiores.

Tiago Amate