Lisboa, 16 de janeiro de 2023
Olá, pessoas queridas
Escrevo hoje sem saber se haverá sol ou chuva, ainda sem saber o que nos aguarda na linha do horizonte. No texto “Pensar em não ver”, Jacques Derrida diz que o acontecimento não tem horizonte. “Só há acontecimento ali onde não há horizonte”, pois o acontecimento não vem diante de nós, diante dos olhos que vem vir o que vem. Na horizontal, a visão nos tira o acontecimento e por isso aquilo que acontece surge de onde os olhos não têm alcance, vindo de trás, de cima ou de baixo. Será que hoje vai chover? A chuva nem sempre é previsível ao horizonte humano e por isso nos molha, de surpresa. Algo que chega de cima, já nos molhando. Nessa imprevisibilidade chuvosa do inverno, alguma coisa acontece e todas as previsões falham. De repente o sol surge de um amontoado de nuvens, ofuscando a frieza do dia invernal.
Em Lisboa, costumo viver essas pequenas surpresas nos miradouros, onde o horizonte é distante o suficiente para ser imprevisível. Logo que cheguei de mudança à cidade, em pleno inverno, saía correndo para assistir ao por do sol e, atrasado que sou, muitas vezes o perdi. Os dias ficando cada vez mais curtos e minha esperança de sobrevivência como corpo estrangeiro numa Europa fria, logo eu, vindo dos trópicos, depositava-se em raios solares. Quantas vezes o sol não presenciou minha chegada esbaforida para acompanhar sua despedida. Algumas vezes rindo, outras chorando, em meio a ligações telefônicas com as pessoas amadas no Brasil, ou completamente solitário entre desconhecidos. Um livro nas mãos e alguns croissants no saco de papel. A vida de corpos migrantes acompanha alguma melancolia na desterritorialização, ainda que nossas comunidades estejam em expansão e retomada de direitos em países do norte global.
Gosto de estar só às vezes, ainda que a falta dos amores que deixei no Brasil manifeste-se como uma presença implacável. A solidão tem seus pesos e, no entanto, abre outras formas de percepção, talvez mais contemplativas e independentes. Estar só também é da ordem do acontecimento, quando repentinamente surge alguém e ali já partilhamos um encontro. Normalmente, busco, na solitude, lugares de paz, onde possa repousar um pouco a consciência sem o imperativo dos códigos sociais. Em Lisboa essa pode ser uma tarefa árdua, no entanto. O turismo predatório e sua crescente especulação imobiliária estão a transformar lugares públicos em verdadeiros shoppings a céu aberto. Nada contra os turistas, espero que consigam ser felizes em suas ficções de globalização. Só não me peça entusiasmo quando todos os lugares aos quais decidimos ir estão abarrotados de expats do norte europeu e de todo o entretenimento espetacular que os acompanha.
Outro dia conversava com duas queridas pessoas sobre a experiência de ocupação artística nas ruas portuguesas. Deixei evidente meu incômodo sobre o quanto essa linguagem se tornou refém da economia política que o turismo produziu em sua hegemonia branca e classista. Para se apresentar em lugares de muita visibilidade, como a Baixa-Chiado, é preciso fazer algo inédito ou de difícil execução. Por isso ali se formam sempre aglomerações de espectadores à espera de um acontecimento. Noutros lugares, há sempre quem toque músicas, mesmo que nem sempre da forma mais afinada. Nada contra o entretenimento para turistas, mas às vezes só queria estar tranquilo num lugar onde a noção de espetáculo não fosse relevante o suficiente para monopolizar as interações cotidianas, ainda que ouvir música ao vivo seja maravilhoso, às vezes.
Penso que essas configurações em Lisboa acabaram por me desencorajar a dançar no espaço público. Não suporto a ideia de virar o centro das atenções, como se meu corpo fosse capaz de saciar as narrativas espetaculares esperadas por essa galera. Dançar na rua tem um sentido próprio pra mim, e começa como ato de dissidência política, não atração turística. Danço na rua porque os palcos estavam de portas fechadas para mim desde muito cedo e, no fim das contas, agradeço por isso. Não precisar de um palco para dançar e não esperar transformar qualquer lugar onde se dance num palco é o início de uma conversa interessante para minhas provocações performativas. Aquilo que alguns antropólogos chamam de “dança social” nada mais é do que um ato de resistência estética, política, cultural (ou todas juntas) em torno de uma experiência que coloca o corpo e suas interações afetivas no centro das relações humanas. Politicamente falando, ocupar as ruas fora do regime logocêntrico que instaurou o processo civilizador violento, especialmente no ocidente, é lembrar que a vida tem outras prioridades, inclusive epistemológicas. Afinal, quem determinou como nossos corpos tem que se locomover, se vestir e se comunicar no cotidiano? Acho que todos podemos ensaiar uma resposta e com certeza chegaremos a uma anedota comum: a falácia discursiva da razão etnocêntrica de um homem branco europeu e a perversidade com a qual conduziu instituições excludentes e assassinas por séculos, interditando a vida social e simbólica de inúmeras populações espalhadas pelo planeta.
Então eu, assim como tantas outras pessoas, dançamos no espaço público não em busca de transformá-lo no palco onde a branquitude europeia se permite alguma contemplação, mas como lembrança do que pode ser outro espaço público, que não este interditado pelas relações soberanas e disciplinares de poder. O que aconteceria com este mundo se nossa relação com o corpo abandonasse o utilitarismo comercial da hegemonia capitalista e elaborasse outros regimes de significação e expressão? Como seria estar num mundo onde a visão horizontal não ofuscasse os múltiplos acontecimentos hápticos dos corpos? Apenas me pergunto sobre este mundo aparentemente distante da vida cotidiana nas grandes metrópoles porque são essas as mesmas perguntas que me lançam em direção ao por do sol quando me resta algum tempo fora do regime de exploração político-econômica. Cada vez menos interesso-me pela pergunta de Baruch Espinoza para dar lugar a tantas outras. Pouco me interessam os limites do que um corpo pode fazer. Não se trata de potência, mas de regimes de autorização. Será que eu e você somos autorizados a dançar? Será que podemos dançar? Ou esta decisão está nas mãos de uma economia política de expropriação que autoriza alguns corpos e outros não? Afinal, por que algumas pessoas são autorizadas a dançar e outras não?
Assim como o sol não pede autorização para se por, não pedirei aos donos do mundo um passe livre para aqui estar. O meu corpo acontece fora do regime dos opressores.
Tiago Amate
Então eu, assim como tantas outras pessoas, dançamos no espaço público não em busca de transformá-lo no palco onde a branquitude europeia se permite alguma contemplação, mas como lembrança do que pode ser outro espaço público, que não este interditado pelas relações soberanas e disciplinares de poder. O que aconteceria com este mundo se nossa relação com o corpo abandonasse o utilitarismo comercial da hegemonia capitalista e elaborasse outros regimes de significação e expressão? Como seria estar num mundo onde a visão horizontal não ofuscasse os múltiplos acontecimentos hápticos dos corpos? Apenas me pergunto sobre este mundo aparentemente distante da vida cotidiana nas grandes metrópoles porque são essas as mesmas perguntas que me lançam em direção ao por do sol quando me resta algum tempo fora do regime de exploração político-econômica. Cada vez menos interesso-me pela pergunta de Baruch Espinoza para dar lugar a tantas outras. Pouco me interessam os limites do que um corpo pode fazer. Não se trata de potência, mas de regimes de autorização. Será que eu e você somos autorizados a dançar? Será que podemos dançar? Ou esta decisão está nas mãos de uma economia política de expropriação que autoriza alguns corpos e outros não? Afinal, por que algumas pessoas são autorizadas a dançar e outras não?
Assim como o sol não pede autorização para se por, não pedirei aos donos do mundo um passe livre para aqui estar. O meu corpo acontece fora do regime dos opressores.
Tiago Amate