Lisboa, 16 de janeiro de 2023
Escrevo hoje sem saber se haverá sol ou chuva, ainda sem saber o que nos aguarda na linha do horizonte. No texto “Pensar em não ver”, Jacques Derrida diz que o acontecimento não tem horizonte. “Só há acontecimento ali onde não há horizonte”, pois o acontecimento não vem diante de nós, diante dos olhos que vem vir o que vem. Na horizontal, a visão nos tira o acontecimento e por isso aquilo que acontece surge de onde os olhos não têm alcance, vindo de trás, de cima ou de baixo. Será que hoje vai chover? A chuva nem sempre é previsível ao horizonte humano e por isso nos molha, de surpresa.
Gosto de estar só às vezes, ainda que a falta dos amores que deixei no Brasil manifeste-se como uma presença implacável. A solidão tem seus pesos e, no entanto, abre outras formas de percepção, talvez mais contemplativas e independentes. Estar só também é da ordem do acontecimento, quando repentinamente surge alguém e ali já partilhamos um encontro. Normalmente, busco, na solitude, lugares de paz, onde possa repousar um pouco a consciência sem o imperativo dos códigos sociais. Em Lisboa essa pode ser uma tarefa árdua, no entanto. O turismo predatório e sua crescente especulação imobiliária estão a transformar lugares públicos em verdadeiros shoppings a céu aberto.
Penso que essas configurações em Lisboa acabaram por me desencorajar a dançar no espaço público. Não suporto a ideia de virar o centro das atenções, como se meu corpo fosse capaz de saciar as narrativas espetaculares esperadas por essa galera. Dançar na rua tem um sentido próprio pra mim, e começa como ato de dissidência política, não atração turística. Danço na rua porque os palcos estavam de portas fechadas para mim desde muito cedo e, no fim das contas, agradeço por isso. Não precisar de um palco para dançar e não esperar transformar qualquer lugar onde se dance num palco é o início de uma conversa interessante para minhas provocações performativas. Aquilo que alguns antropólogos chamam de “dança social” nada mais é do que um ato de resistência estética, política, cultural (ou todas juntas) em torno de uma experiência que coloca o corpo e suas interações afetivas no centro das relações humanas. Politicamente falando, ocupar as ruas fora do regime logocêntrico que instaurou o processo civilizador violento, especialmente no ocidente, é lembrar que a vida tem outras prioridades, inclusive epistemológicas. Afinal, quem determinou como nossos corpos tem que se locomover, se vestir e se comunicar no cotidiano? Acho que todos podemos ensaiar uma resposta e com certeza chegaremos a uma anedota comum: a falácia discursiva da razão etnocêntrica de um homem branco europeu e a perversidade com a qual conduziu instituições excludentes e assassinas por séculos, interditando a vida social e simbólica de inúmeras populações espalhadas pelo planeta.
Então eu, assim como tantas outras pessoas, dançamos no espaço público não em busca de transformá-lo no palco onde a branquitude europeia se permite alguma contemplação, mas como lembrança do que pode ser outro espaço público, que não este interditado pelas relações soberanas e disciplinares de poder. O que aconteceria com este mundo se nossa relação com o corpo abandonasse o utilitarismo comercial da hegemonia capitalista e elaborasse outros regimes de significação e expressão? Como seria estar num mundo onde a visão horizontal não ofuscasse os múltiplos acontecimentos hápticos dos corpos? Apenas me pergunto sobre este mundo aparentemente distante da vida cotidiana nas grandes metrópoles porque são essas as mesmas perguntas que me lançam em direção ao por do sol quando me resta algum tempo fora do regime de exploração político-econômica. Cada vez menos interesso-me pela pergunta de Baruch Espinoza para dar lugar a tantas outras. Pouco me interessam os limites do que um corpo pode fazer. Não se trata de potência, mas de regimes de autorização. Será que eu e você somos autorizados a dançar? Será que podemos dançar? Ou esta decisão está nas mãos de uma economia política de expropriação que autoriza alguns corpos e outros não? Afinal, por que algumas pessoas são autorizadas a dançar e outras não?
Assim como o sol não pede autorização para se por, não pedirei aos donos do mundo um passe livre para aqui estar. O meu corpo acontece fora do regime dos opressores.
Tiago Amate
Então eu, assim como tantas outras pessoas, dançamos no espaço público não em busca de transformá-lo no palco onde a branquitude europeia se permite alguma contemplação, mas como lembrança do que pode ser outro espaço público, que não este interditado pelas relações soberanas e disciplinares de poder. O que aconteceria com este mundo se nossa relação com o corpo abandonasse o utilitarismo comercial da hegemonia capitalista e elaborasse outros regimes de significação e expressão? Como seria estar num mundo onde a visão horizontal não ofuscasse os múltiplos acontecimentos hápticos dos corpos? Apenas me pergunto sobre este mundo aparentemente distante da vida cotidiana nas grandes metrópoles porque são essas as mesmas perguntas que me lançam em direção ao por do sol quando me resta algum tempo fora do regime de exploração político-econômica. Cada vez menos interesso-me pela pergunta de Baruch Espinoza para dar lugar a tantas outras. Pouco me interessam os limites do que um corpo pode fazer. Não se trata de potência, mas de regimes de autorização. Será que eu e você somos autorizados a dançar? Será que podemos dançar? Ou esta decisão está nas mãos de uma economia política de expropriação que autoriza alguns corpos e outros não? Afinal, por que algumas pessoas são autorizadas a dançar e outras não?
Assim como o sol não pede autorização para se por, não pedirei aos donos do mundo um passe livre para aqui estar. O meu corpo acontece fora do regime dos opressores.
Tiago Amate